domingo, 26 de março de 2017

Critica de Diego Fortes (prêmio Shell 2017 de melhor autor) sobre o espetáculo Limbo



Inaugurando o Coletivo de Heterônimos, França apresenta uma dramaturgia que utiliza a linguagem como a fumaça de um cigarro. Uma bola branca e disforme que passeia livremente, faz um balé dentro do pulmão canceroso de Guilherme. Este nome, aqui, é uma das múltiplas identidades que esse som de três sílabas assume. Inclui até o "rei" Guilherme Arantes - presença gloriosa na sonoplastia. 

As obsessões do texto (com câncer, com a glória mórbida da doença e o nome Guilherme) possuem, ao mesmo tempo, um caráter cruel, cômico e filosófico. É importante destacar que a habilidade de trânsito entre a situação dramática e o poético se dá sem esforço - coisa de quem já joga bola há um tempinho...

Bruno Ribeiro e Amanda Mantovani (atores-samurais-de-Kurosawa) empregam suas impressionantes ressonâncias e movimentação precisa pelo cenário branco. Em nenhum momento, escorregam em escolhas fáceis, mas criam tensão e humor em um texto provocador.

Um sólido começo de trabalhos para o grupo.

Diego Fortes é diretor e dramaturgo da Armadilha Cia de Teatro. Realizou, entre outras montagens, Café Andaluz e Os Leões, ambas de sua autoria. E O Grande Sucesso, prêmio Shell 2017 de melhor autor. 

quinta-feira, 9 de março de 2017

A arquitetura da coincidência - algumas chaves de entendimento da peça LIMBO



por Alexandre França
É preciso ter em mente, ao assistir a um espetáculo como Limbo, que a questão do conflito e do desenvolvimento da trama encontra-se, não superada, mas em outro espaço. Talvez suplantada, no terreno movediço das coincidências. Limbo não é uma obra que dará ao público um fio condutor, um desenvolvimento – trata-se, antes, de tecer com fios de materiais diversos um objeto tridimensional: fios de nylon, fios de algodão, fios sanguíneos, fios de palavras, fios de significantes próprios, fios invisíveis, fios de fumaça – tecer, enfim, a trajetória de um nome, e não de uma pessoa (ou de personagens dentro de uma história). Pois acreditamos, justamente, que o conteúdo de um indivíduo é, antes de ser linguagem, um amontoado químico/biológico não identificado a locomover pedaços de linguagem em função de seu existir silencioso. Não se trata também de problematizar de maneira temática um ponto, aprofundando seu desenvolvimento rítmico em série de cenas fragmentadas e coladas umas nas outras (com o intuito, por exemplo, de gerar uma crítica lateral acerca do objeto em relação a sociedade). Isso, claro, também pode ser captado na fruição da peça (a espetacularização de uma doença como o câncer, por exemplo). Mas não é o principal aqui. Trata-se, mais do que tudo, de se aproximar de UM real; os últimos segundos de um indivíduo. E do que isso pode provocar em nossa recepção. Em nossa visão de mundo.  


Neste sentido, Limbo coloca no limite a relação causal entre pares. Como se a coincidência fosse a verdadeira força motriz a movimentar os tentáculos frasais evocados pelos atores. E, no fundo, essa é de fato a gasolina de que se vale a anti-dramaturgia de Limbo – a coincidência. Coincidência de nomes, lugares, celebridades, doenças, acontecimentos de todas as ordens. O que carrega um nome vazio de fundamento? O que um nome, suspenso de sua origem, pode carregar, para além de uma estruturação histórica?
São duas as camadas expostas para o público: a de um nome, “Guilherme” e a do câncer, uma doença considerada grave e dificilmente reversível. A partir daí as duas camadas se abraçam, mostrando esses acontecimentos evanescentes, que não sabemos mesmo possuir legitimidade, ou sustentação no solo do verossímil. O que cabe na camada do nome Guilherme? Um garoto apertando a campainha dos apartamentos? Um garoto que poderia ser o próprio homem que fala na sua infância? Um colega de trabalho? O colega de trabalho da mãe deste homem? O cantor Guilherme Arantes? E em relação ao câncer? Em qual figura incide? Veja, leitor: isso não é embromação. A cabeça deste anônimo em seu leito de morte é uma fábrica de montar coincidências, e sua linguagem levará no limite do desespero a ligação entre esta fábrica e a sua expressão.

 E não seria essa a sensação de quem está prestes a perder sua própria vida? De que os acontecimentos seriam miragens, ilusões vazias, a nos conduzir ironicamente a um labirinto sem fundo? De que, ao mesmo tempo, estes acontecimentos-miragens seriam reais, forças intuitivas a nos colocar novos significados acerca do já vivido, do já presenciado? Este é o território de Limbo – uma zona indiferente entre o saber e o não saber, entre o que acontece e o que não acontece, entre o céu e o inferno. Sofremos sem saber que estamos sofrendo. Curamos sem saber que estamos curando. Tudo isso para no final encontrar a última porção que constatamos ser nossa: o silêncio provocado pela nossa morte – acontecimento do qual não tomaremos conhecimento.